Edição textual

Edição textual
"es pulir huesos paciencia" O.Paz

segunda-feira, 8 de março de 2021

Sobre um poema de Heloísa Prazeres por Celina Scheinowitz

 


Lenda 


nossas viagens encontraram portos

e a exaustão de tantos desembarques

o quarto princípio entrelaçou-se

sob palmeiras, cacimbas e oásis 

ao alvorecer deu-se o rapto 

enorme vivo ventre sua casa

criança encarecida veio cedo

ave nativa desse antigo espaço —


vencidos os peraus de outras águas

no quarto calendário de batismos 

florou inteira a sua primavera 

no vaivém de madrinhas pelo quarto 

era a recepção de sua origem 

largo ser você ancora à terra

(leda madrugada de espessuras)

nascente de Jauá dos Guajirus


   "Lenda", poema de Heloísa Prazeres, ressoa como uma composição essencialmente feminina. Existiria, então, uma literatura feminina? Sim, "Lenda" o comprova, pois ao homem não é dado partilhar as vivências do ser lírico aí contidas, sendo-lhe apenas permitido admirá-las e até com fervor, já que ele também nasceu de uma mulher, sua mãe.  Na composição, surpreende-se a voz poética de uma mulher que relembra sua quarta gestação e o nascimento de seu quarto filho, ao qual sei ventre serviu de "casa" (v. 6) e foi "antigo espaço" (v. 8), ninho em que se aconchega sua "ave nativa" (v. 8).

   Construído em duas oitavas, o título remete a uma lembrança longínqua, no tempo e no espaço, que se integra ao imaginário feminino, em que as gestações são vistas como viagens que se dirigem a portos para o desembarque da vida. Lenda, porque o poema evoca a vinda ao mundo de um ser que cresceu e se tornou maravilhoso; lenda porque a chegada ao mundo dessa criança ocorre em um lugar mítico, em Jauá dos Guajirus (v. 16)...

   O ambiente que recebe o nascituro é verde vegetal e líquido aquoso (cf. "palmeiras", "cacimbas", "oásis", "peraus", " águas", "batismo", "florou", "nascente"). Percebe-se o desejo da mãe de guardar eternamente esse ser no seu corpo, todavia ocorre o "rapto", que o arranca da segurança de seu ventre materno. O vocábulo "rapto" (v. 9), para representar o parto apenas com a inversão das consoantes da primeira sílaba, dota-se de um evidente alongamento vocálico, visto que quinze versos do poema se perfazem em decassílabos e o nono verso arrasta-se no final no vocábulo ra-ap-to, para marcar a dor da expulsão do feto do ventre materno e perfazer o metro decassilábico. 

   A dor do parto não é escamoteada e nomeia-se por expressões como "exaustão" (v. 2) e "vencidos os peraus de outras águas" (v. 9). A chegada do filho é desejada com amor, pressentido no vocábulo "oásis" e expresso com todas as letras no sintagma "criança encarecida" (v. 7). Esse filho "enorme" (v. 6), "largo ser" (v. 14), mas que "veio cedo" (v. 7), daí  ter aportado em Jauá. Viçosa e florida foi a recepção dessa chegada, que "florou inteira a sua primavera" (v. 11)...

   O parto tendo ocorrido "ao alvorecer" (v. 5), numa "leda madrugada de espessuras" (v. 15), logo o mulherio da família  ocorre para festejar o evento ("no vaivém de madrinhas pelo quarto" ,  v. 12).

   Quanta alegria recordar a chegada de um bebê... Merece um poema!

   Obrigada, Heloísa Prazeres. Pela beleza de suas palavras e de seus sentimentos! 

   E aqui finda essa pobre leitura.


                             Celina Scheinowitz

p

Nenhum comentário:

Postar um comentário